Feriadinho repleto de decisões muito, extremamente difíceis.
Quem sou eu para decidir se alguém vive ou morre? Quem sou eu para "brincar de Deus"? Peso na consciência... Racionalmente eu saiba que era o melhor, que ele morreria de qualquer maneira durante a noite ou nos próximos poucos dias de dor ou desidratação. Mas não ameniza a minha dor saber disso.
15 anos atrás, lembro muito bem de irmos no Honjo num domingo de manhã onde tinha uma feira semanal de animaizinhos para venda e/ou doação. Lembro de rodar a quadra toda (o que para mim, uma pequena criança de 10 aninhos, parecia o paraíso e enooorme) e bater de cara com ele. Amei já de cara. Mas olhamos todos os outros vendo se era realmente esse. Não adiantou, voltamos, peguei no colo aquela coisinha pretinha com a barriguinha branquinha e um pinguinho de tinta branca escorrida no pescoço. Levamos para casa.
Quando ele cresceu era uma figurinha, "atacava" (cheirando incovenientemente) as moças que estavam "naqueles dias", sentava com as patinhas cruzadas (bem meigo), caçava ratos e passarinhos e na hora do almoço batia o focinho na coxa das pessoas sentadas à mesa pedindo comida. Aos poucos fomos descobrindo outras habilidades como compania em dias tristes (sim, quantas vezes na minha adolescência chorosa ele não se sentou ao meu lado e tentou lamber minhas lágrimas), limpar o chão da comida que caia, latir pro vento que passava na rua, correr em circulos disparados no quintal. Sua carinha triste com as orelhas caídas faziam todos que nos visitavam pelo menos passarem a mão na cabeça dele. Não gostava que o pegassem no colo (até hoje digo que é culpa do meu pai e do meu irmão que ficavam jogando ele quando ele era pequeno), só eu e minha mãe que conseguíamos realmente apertá-lo e esmagá-lo. Adorava cantar ao som da gaita do meu irmão (tudo bem que era um dos momentos mais irritantes da sua presença em casa, aquela gaita aguda irritante e seu uivado (?) super alto e também extremamente agudo). Ficava bravo, latindo e rosnando quando meu pai passava a unha na porta. Ficava desesperado com bombas e fogos de artifício (uma vez atravessou a cidade, tá, nem tanto, 5 km só, numa noite de ano novo, fugindo de onde tínhamos deixado ele pra ele não se sentir sozinho. Coitada da minha tia, deve ter ficado desesperada com o sumisso dele!) e era muito esperto para andar na rua, sem olhar para os lados, só pelo som sabia se podia ou não atravessar a rua. Era extremamente obediente quando queria e quando já tinha terminado sua voltinha pela quadra.
Depois ele foi ficando velhinho, passava o dia dormindo. Foi perdendo a visão e nos proporcionando cenas engraçadíssimas (como ele atacando a sombra no armário achando que era comida), tombos, olhares perdidos, indecisões. Esqueceu que não podia subir nos quartos em casa e várias vezes aparecia por lá nos visitar. Até que ele começou a cair e escorregar na escada e passar medos ao atravessar a rua. Parou de subir, parou de dar suas voltinhas. Quando ele começou a perder a força nas patinhas trazeiras devido à um "pinçamento" na coluna fomos nos preparando. Já tomava remedinhos faz mais de 1 ano. Toda vez que algum de nós viajava pensava que ia voltar não iria encontrá-lo. Cada vez mais cego, mais surdo, mais sem olfato e eu juro que ele tinha alguma doença que fazia ele esquecer das coisas! Ele andava todo decidido em uma direção, parava, olhava pros lados pensando depois caminhava pra outro lado devagar, olhando pro além. Com certeza ele esquecia onde estava indo, o que estava indo fazer.
Embora ele não fosse mais parte tão presente da familia já que praticametne só dormia e não nos reconhecia direito, ainda era muito amado. Meu pai e meu irmão continuavam provocando ele todos os dias, fazendo ele ficar nervoso, latir, rosnar, atacar. Eu continuava chegando em casa tarde e antes de subir, por mais cansada que estivesse ia ver se ele tava bem e fazia um pouco de carinho. Nos últimos meses ele nem abria o olho quando eu acendia a luz e colocava a mão na cabeçinha dele. Minha mãe continuava brincando com ele, cuidando dele, fazendo carinho.
Nunca me deu tristezas. Foram 15 anos felizes. Não consigo imaginar uma vida sem um cachorrinho. Mesmo que por um tempo você não dê tanta atenção assim para ele. Muitos sorrisos foram liberados do meu rosto olhando pra ele.
Sábado, 06/09, ele caiu com a pata trazeira dentro destes vãos de bueiro de rua. Não enchergou e não sentiu o cheiro do bueiro. Isso prejudicou ainda mais a coluna dele. Passei a noite indo olhar o estado dele de hora em hora. De hora em hora ele piorava. No dia seguinte levei no veterinário 24hrs onde veio a primeira decisão. Ninguém lá de casa queria gastar com o cachorro. Eu decidi que dinheiro não é nada, ele não podia morrer sofrendo desse jeito e internei. No dia seguinte fomos buscá-lo, segunda-feira, feriado em Curitiba. Ele não conseguia ficar em pé direito, chorava muito de dor, nos olhava com um olhar dolorido, de sofrimento, coisa que nunca vi no olho dele. Surgiu também um calombo gigante na barriga dele, de um dos lados. Levamos na Priscila, a veterinária sanguinária (coitada, fazendo o trabalho dela, prezando a qualidade de vida dos bichinhos). Todos lá de casa sabiam que assim que ele começasse a sofrer de mais deveria sofrer eutanásia. Minha mãe disse ok mas ficou em casa. Meu pai estava sem acesso ao celular. Meu irmão e minha cunhada foram junto comigo, mas na hora senti que a pressão estava em mim, que eu deveria dar o ok. Demorei bastante, pesando tudo. A veterinária falou que se fosse dela ela sacrificaria pois não tinha mais qualidade de vida, se arrastaria e sofreria muito. Foi o que me fez tomar a decisão. Chorei muito, muito mesmo. Uma partezinha de mim, da minha vida, da minha história, um companheiro que se vai para sempre. Queria ter ido embora, mas tinha que levar meu irmão depois e os dois quiseram assistir. O pior foi carregar o corpinho no saco preto no porta malas. E ver a cara de feliz do meu primo com a pá na mão para cavar a cova.
Agora ele está no cemitério dos cachorros da familia, junto com outras duas cadelinhas.
Tenho certeza que o Pingo Escorrido S. M. está no céu dos cachorros, correndo pelos campos, comendo ossinhos gostosos, fazendo amiguinhos.
E no meu coração um buraquinho, um vaziozinho.
Um comentário:
o vazio é sempre cheio de tristeza. mas ninguém, nem mesmo quando falamos de cachorros, vive pra sempre. aceitar faz parte.
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